10 de novembro de 2013

TCA – UMA POESIA CONCRETA


Isaias de Carvalho Santos Neto

Adroaldo Ribeiro Costa nos conta em sua autobiografia Igarapé esforço feito para que Salvador voltasse a ter um teatro. Diz ele que, em 1923, Seabra investiu em reparos no Teatro São João, como parte das festas pelo centenário da Independência. Mas em 6 de junho, a menos de um mês para a reinauguração, misterioso incêndio destruiu o edifício. O sonho foi retomado em fins dos anos 40, quando Mangabeira patrocinou (talvez, influência de Anísio Teixeira) projeto para um centro de artes com teatro, escola dramática, teatro de comédias, concha acústica e teatro infantil. O plano não foi adiante, mas naquele momento estava sendo cultivada a semente do Teatro Castro Alves, finalmente inaugurado em 1958 como o mais vigoroso monumento arquitetônico da capital baiana em pelo menos três aspectos: localização, projeto e uso dos seus espaços.
 Os teatros costumam estar – aliás, com todo direito – em locais onde sejam vistos a partir de ampla perspectiva. Afinal de contas, o teatro é monumento desde as suas remotas origens. Bruno Zevi nos ensina que, para os gregos, o teatro era edificação de destaque em um conceito de cidade onde o que mais valia era a definição do ponto central, como local em que o povo pudesse se reunir. Dai o prestígio que se dava na antiga Grécia ao teatro e à praça pública. Se a Ágora é o fundamento do urbanismo grego, o Teatro é o fundamento da arquitetura grega e o TCA atende a esses dois requisitos: é monumento concebido para ser “morada dos deuses”, e está edificado diante de praça que tem rica história como ágora moderna, no centro da cidade.
 O Campo Grande é um lugar polivalente: foi sede de partido político onde Ulysses Guimarães enfrentou cães e metralhadoras em maio de 1978; ali esteve erguido templo da Igreja Anglicana, quase ao lado de onde funcionou a Assembleia Legislativa do Estado; abrigou em um de seus flancos o carnavalesco Clube Cruzeiro da Vitória (antes, Cruz Vermelha); foi por pouco tempo terminal de ônibus e em frente a uma de suas esquinas está o Hotel da Bahia, cujo projeto (o original) é uma das obras precursoras da arquitetura modernista em Salvador. E o mais importante na praça: tem a escala da sua paisagem marcada pelo monumento aos heróis de 2 de julho.
 A Ode ao Dois de Julho, reverenciado poema de Castro Alves, narra as lutas travadas e o heroísmo na batalha até a vitória em 1823. O poeta parecia pressentir a necessidade de garantir mais que a memória da luta pela independência. Ele se dirigia às novas gerações para que estas compreendessem o verdadeiro significado daquele episódio, hoje tão esquecido. O belo monumento ocupa o ponto central da praça e não é por outra razão que o cortejo, que antes finalizava no Terreiro de Jesus, estende-se da Lapinha ao Campo Grande.
Houve mudança na relação espaço/poder na Grécia no momento em que o pensamento passou a ser regido pelo “logos”, substituindo a concepção mitológica do mundo. Para a arquitetura, ocorreu a abertura dos espaços para uso coletivo. Essa “descoberta” produziu efeitos sobre a cidade, substituindo o antigo realismo das explicações arbitrárias pelo idealismo da razão, pelo triunfo do que somente poderia ser conquistado se, espacialmente, o território fosse livre. Esse logos e suas consequências estão presentes no projeto do TCA por intermédio de formas muito simples: o paralelogramo do foyer, o triângulo das paredes laterais, os troncos de pirâmide que sustentam o auditório, o retângulo na parede externa ao fundo, o trapézio na cobertura, tudo no mais autêntico traço modernista. Quanto à condição de ser, digamos, uma arquitetura republicana, vale destacar a transição entre o público e o privado (ou entre espaço exterior e espaço interior) proporcionado a quem transita pela rampa no acesso ao auditório, em direção ao lugar que é plateia sem frisas, sem camarotes, sem diferença de qualidade nas poltronas.
Como espaços abertos, desde as mais remotas formas de aglomeração, rodeadas de edificações ou monumentos, as praças constituíram sempre locais de encontro de pessoas e principal centro público para diversas finalidades. Se assim é, a raiz grega ligada à função Teatro continua em evidência no TCA, onde tal condição se confirma duplamente. Quando nos encontramos no foyer, sentimos a sensação de não estarmos no templo, de ainda estarmos em recinto profano e é a rampa, como rito de passagem, que nos leva lenta, silenciosa e respeitosamente em direção ao sagrado.

A segunda evidência vem com ajuda da etimologia: a palavra “praça” na origem latina é “plattea”, ou seja, praça e plateia em português contemporâneo têm a mesma origem. A vista que se tem da Praça 2 de Julho, o popular Campo Grande, desde o jardim suspenso por sobre o foyer, nos dá a ideia de que, em relação a Salvador, o Teatro Castro Alves é palco e plateia. Isto não é pouca coisa: sugere compromisso mútuo entre o Teatro e a sua cidade.